|
|
|
Vidas
Vidas - uma seção que tem o objetivo de expor
a alma de Santos, presente nas coisas mais típicas da
cidade. |
Os
Catraieiros
por Felipe Alexandre M. Ozores |
Bacia do Mercado,
sábado, 15:00 horas
Perto da bacia do mercado, vejo ao longe o embarque e desembarque
dos passageiros das catraias, pequenas embarcações
com motor de popa onde as pessoas viajam descobertas e sentadas
bem junto ao nível da água. Observo o Monte Serrat
ao longe, as coloridas catraias, o mercado antigo, os casarões
do início do século com suas fachadas ornamentadas,
os grandes armazéns amarelos do porto e sinto uma mistura
de orgulho e tristeza, visto o abandono em que se encontra todo
o local. Fecho os olhos e imagino este lugar totalmente recuperado,
valorizado pelos santistas e decoberto pelos turistas.
Observando o movimento, noto dois catraieiros conversando, um
sobre a ponte de saída do canal 1 e sua centenária
comporta de aço e o outro em pé sobre uma velha
catraia. Sinto um certo receio em me apresentar como um trabalhador
da Internet, algo tão distante de suas realidades. Conforme
me aproximo, noto que o primeiro é um senhor de aproximadamente
80 anos e fico imaginando a riqueza de informações
que pode fornecer aquela verdadeira testemunha do tempo. Me
aproximo da velha figura e descubro o Sr. Myasak, 30 anos de
profissão, japonês de origem que chegou ao Brasil
em 1956. Com seu sotaque carregado, ele timidamente teima em
dizer que não vou entendê-lo direito, e eu insisto
em que vou me esforçar por fazê-lo. Após
muita insistência, Myasak cede e inciamos uma longa conversa.
Bem vindo à
bordo: a viagem começa
Observando o movimento das catraias, o Sr. Myasak conta-me que
seu primeiro emprego foi como pescador em uma das chatas (como
os catraieros chamam as catraias) que abasteciam as pequenas
peixarias do Mercado Municipal. Até pude imaginar aquele
cenário, com as catraias carregadas de peixes frescos
chegando, os pescadores desembarcando e gritando ofertas, enquanto
os comerciantes do mercado disputavam as melhores mercadorias.
Ele mostra-me uma antiga máquina de triturar gelo, que
ainda resiste ao tempo, na calçada oposta a dos desativados
boxes de peixes. Desativados, pois das muitas peixarias que
ali existiam, só restam as paredes com seus azulejos
brancos. "De todas só restaram duas", conta
triste. |

O primeiro Mercado Municipal e o movimento
das
catraias no início do século XX (postal M.Serrat). |
Em 1962, Myasak comprou sua primeira chata, com motor a gasolina
e 20 cavalos de potência, que resiste até hoje.
Agora, com 82 anos, o seu encontro com a sua "princesa",
como carinhosamente a chama, ocorre todos os dias às
4 hs da manhã, quando ele inicia uma série de
viagens entre os dois lados do estuário. - "Em um
dia como esse, domingo, dá pra fazer umas 8 viagens,
mas já são três da tarde e eu só
fiz quatro", lamenta ele.
E continua: - "O movimento caiu muito, é só
notar como o flutuante demora para encher", referindo-se
ao reduzido número de pessoas esperando o embarque no
flutuante que serve de acesso às barcas. Pergunto-lhe
qual seria o principal motivo da queda no movimento, mas ele
diz não saber. Outro catraieiro, que escutava de perto
a conversa, intervém: - "O maior motivo foi a privatização
do porto... teve muita gente demitida." Segundo ele, cujo
nome era David, a maioria dos usuários de catraias é
formada pelos trabalhadores das docas. Outros motivos seriam
o desenvolvimento do comércio em Vicente de Carvalho,
a redução do número de ônibus que
serve o bairro do Paquetá e a própria decadência
do Mercado Municipal de Santos. Subitamente, o Sr. Myasak sobe
na antiga comporta de aço do canal e por ela desce até
a sua catraia. - "Está na minha vez e o flutuante
já está quase cheio", se despede, apressado.
O início:
catraias a remo carregadas de peixe e hortifrutigranjeiros abasteciam
o mercado.
Continuamos a conversar, eu e Sr. David. Ele conta que seu pai
também era catraieiro. - "Então esta é
uma profissão que passa de pai para filho?", pergunto.
Ele lamenta e diz que não quer a mesma profissão
para seus filhos e netos. - "Hoje isto aqui não
dá mais nada", responde com o olhar distante, parecendo
observar o estado de abandono em que se encontra toda a área.
Sr. David leva-me à uma verdadeira viagem ao passado.
Diz que a bacia foi construída no final do século
para abastecer o antigo mercado municipal, demolido na década
de 30 para dar lugar ao novo. Lembra os baleeiros, pequenas
embarcações a remo que traziam hotaliças,
granjeiros com ovos e frangos, ou ainda uma enorme quantidade
de bananas, tudo vindo de pequenos sítios localizados
na Ilha Diana e no Sítio das Neves (na área continental
de Santos). A bacia do mercado, com suas rampas de paralelepípedos,
nunca teve trapiches, e por isto os baleeiros subiam nas rampas
e descarregavam os produtos. Sr David conta que seu pai veio
do Ceará e começou na profissão com quinze
anos de idade. - "Naquela época, por volta de 1922,
as catraias eram movidas a remo", conta ele. - "A
remo?", surpreendo-me. - "Sim, havia um remador para
doze passageiros e a travessia levava de 15 a 20 minutos",
reponde. - "Imagino a força que o seu pai fazia
para deslocar toda aquela gente através do estuário,
sempre sujeito às correntezas da maré e ao tráfego
intenso dos navios". Segundo ele, a maioria dos passageiros
eram doqueiros, e muitas vezes pediam para remar no lugar do
catraieiro. |

As catraias abarrotadas de bananas, na
década de 30. |
Entram em operação
as primeiras catraias motorizadas no ano de 1942
Paramos um instante para olhar um caminhão pipa da prefeitura
fazendo a limpeza de uma das calçadas do mercado e, quando
voltamos nossa atenção para as catraias, notamos
que o Sr. Myasak já havia retornado de sua viagem à
Vicente de Carvalho, ou Itapema, como os catraieiros ainda chamam
aquele distrito do Guarujá. - "Em 1942 entrou em
operação a primeira catraia motorizada, movida
a gasolina. Tinha 5 cavalos de potência", conta o
Sr David. Sem saber se isto era muito ou pouco, pergunto-lhe
quantos cavalos possuem os motores das catraias atuais. Sua
resposta surpreende-me mais uma vez: - "Setenta."
E pergunto: - "Então 5 cavalos é muito pouco
para uma catraia deste porte?" E ele diz: - "É
muito pouco, e se hoje você já acha este barulho
engraçado, você não faz idéia do
que era na época. Isso sem contar a fumaça".
Sr. David conta que apesar do pai trabalhar desde os 15 anos
com o serviço de travessia, só em 1953 deixou
de ser empregado, ano em que finalmente comprou sua própria
chata. Quando se aposentou, o filho mais velho assumiu a catraia
do pai, mas desistiu seis meses depois e a catraia se perdeu.
Alguns anos depois, o Sr. David iniciou na profissão,
trabalhando como empregado para um dos catraieiros. Depois trabalhou
doze anos como contratado da Dersa nas barcas da travessia Praça
da República-Vicente de Carvalho. Para
comprar uma catraia é necessário no mínimo
80 mil
Em 1992 voltou às catraias, onde está até
hoje, ainda como empregado. - "Uma catraia custa por volta
de R$ 80 mil e ainda não consegui juntar todo esse dinheiro
para poder comprar a minha", diz mostrando-me as duas catraias
de seu patrão, atracadas na bacia.
- "Segui a carreira de meu pai, mas não quero o
mesmo destino para meus filhos e netos" afirma, explicando
que tudo está em completo abandono. - "O canal não
é dragado há muitos anos e prejudica a navegação",
observa. A prefeitura demoliu em 1998 o antigo terminal, construído
por seu pai e outros catraieiros na década de 50, e em
seu lugar edificou um novo, mas ineficiente terminal. - "Nos
dias de chuva é uma desgraça. A água da
chuva desce pelo forro molhando todos que estão em baixo,
pois os canos não dão vazão à água",
diz David, lembrando que por isso os caixas tiveram que ser
transferidos para o terminal de Vicente de Carvalho. Pode-se
notar também que a arquitetura do novo edifício
não se encaixa com a dos antigos prédios em seu
entorno. Sr David completa dizendo: - "Com o dinheiro que
gastaram ali deveriam ter pintado aqueles prédios..."
Hoje há 80 catraias em operação com 2 "vagas"
de trabalho cada uma. O serviço emprega 230 pessoas,
entre condutores, funcionários da associação
e das oficinas de manutenção. O salário
médio de um catraieiro é de aproximadamente R$
650,00 por mês, pouco para o sustento de uma família
como a do Sr. David. No mês passado a chata em que trabalha
foi para a manutenção e ficou 75 dias no estaleiro.
- "Tive de me virar com os bicos. Mas o que queria mesmo
era ver isto aqui melhorar, porque do jeito que está
não vai dar", concluiu. |

As catraias navegam pelo canal entre o
mercado e o porto,
passando por túneis sob as ruas e o cais. |
Embarque agora,
entre túneis e navios, e faça um dos mais fascinantes
passeios da cidade
Finalmente chega a vez do Sr. David fazer a viagem e, para minha
surpresa, convida-me para o passeio. Sigo até o flutuante
e embarco em uma das catraias junto a outros 10 passageiros.
Com o barulho típico do motor descubro a origem do nome
dado à embarcação: ca-ta-ca-ta-ca-ta-ca-ta-ca-ta...
catraia. A catraia manobra e sua proa converge em direção
a um pequeno canal cujo final não se vê, devido
a uma curva. Quando entra no canal, noto a magnitude das pedras
que o revestem e também o valor de cada bloco. Acredito
que foi construído no início do século,
com o projeto de expansão do porto realizado pela Cia
Docas de Santos, na então área de Outerinhos.
A catraia navega e daqui, quase no nível d'água,
posso observar lá em cima os gigantescos armazéns
que somem de repente, quando a barca invade um escuro túnel
que passa sob o cais. No túnel só há uma
luz, uma lâmpada de 100 w da própria catraia, que
ilumina somente os passageiros. Como não há mais
nada a observar, me atenho aos traços e às emoções
das pessoas que me acompanham nessa pequena jornada. Há
negros, mulatos e brancos, homens, mulheres, crianças
e lá, junto ao leme, o Sr. David, como um pai a conduzir
seus filhos em direção àquela luz que agora
vejo no final do túnel. Ca-ta-ca-ta-ca-ta... a luz se
aproxima, e junto com ela a ansiedade de logo ver onde iremos
sair. O fim do túnel se aproxima, trinta, vinte, dez
metros e, de repente, levo um delicioso susto ao ver que saimos
praticamente de dentro do cais, sob um gigantesco casco de navio
que ergue-se a partir de meus olhos, na linha d'água.
Magnifico! Não existe nada parecido em nenhum lugar do
mundo. A viagem continua rumo ao outro lado do estuário,
como é chamado o braço de rio em que se concentram
o cais e seus navios. Daqui percebe-se o tamanho e a imensidão
do porto. Pode-se observar todo o movimento do cais, o antigo
Farol de Itapema, os restos do navio Ais Giorgios, naufragado
há mais de 40 anos. Estão tão próximos
d'água que não me contenho e mergulho meus dedos,
sentindo melhor a velocidade com que a chata se desloca. Desembarcando
em Vicente de Carvalho, distrito do município vizinho
do Guarujá, pago a passagem de R$ 0,70 e despeço-me
do Sr.David, agradecendo a colaboração. Ele ficará
deste lado, aguardando sua próxima viagem. Embarco em
outra catraia, que me levará em sentido contrário
pelas águas do estuário, de volta à bacia
do mercado. |

Ao desembocar no estuário, o contraste da pequena catraia
ao lado dos grandes navios atracados no cais. |
No final o que
me resta é a certeza de que esta foi uma boa escolha
para retratar a alma da cidade: gente simples, porto, navios,
água e muita, muita história.
Depois dessa entrevista e do passeio de catraia, percebo o invejável
produto turístico que possuímos. As reformas de
privatização do porto são necessárias
para que este se torne mais eficiente diante da concorrência
de outros portos nacionais, afim de evitar a fuga de carga que
acarreta mais demissões. As mesmas reformas, a longo
prazo, trarão as cargas de volta à Santos e com
elas os trabalhadores. Mas até lá é necessário
agir para que os catraieiros não desapareçam do
cotidiano da cidade. A exploração turística
pode ser uma alternativa. É possível alugar
uma catraia para passeios pelo porto e pela Ilha Diana; uma
vez que na catraia cabem 12 pessoas, o passeio sairia, por pessoa,
três vezes mais barato do que os passeios de escuna. |
Santos, janeiro
de 2004 |
Passeio de Catraia pelo estuário e
porto de Santos
Como chegar: Praça Iguatemi Martins, s/n
Não há linhas de ônibus que passem pelo
local. A melhor opção é um táxi
a partir do centro histórico. Solicite ao motorista que
o leve até a Bacia do Mercado. No local há um
ponto de táxi que o levará, após o passeio,
à qualquer lugar da cidade. |
 |
|
|
|