Santa Casa de Santos - a primeira do Brasil
O maior patrimônio da Santa Casa de Misericórdia de Santos é a sua história, que se confunde com a história da própria cidade. Fundada numa época em que Santos não era sequer uma vila, o então Hospital de Todos os Santos deu origem ao próprio nome da cidade. Por cinco séculos atendeu navegadores, colonos, nativos e escravos, foi destruído e reconstruído mais de uma vez, acompanhando o crescimento do porto, da cidade e do país.


A história das Misericórdias
A história da Santa Casa de Misericórdia de Santos começa no século anterior à sua fundação, na Lisboa de 1498, quando Dona Leonor de Lencastre foi aclamada regente do trono no lugar de seu irmão, Dom Manuel, o Venturoso. Também chamada a Rainha dos Sofredores e a Rainha Piedosa, foi ela quem, em 15 de agosto de 1498, fundou a primeira Irmandade de Misericórdia, cujo provedor foi Frei Miguel de Contreras. Os presentes testemunhavam o início de uma das mais significativas obras filantrópicas que o mundo viria a conhecer. A primeira Misericórdia assumiu inicialmente a manutenção do Hospital de Nossa Senhora do Amparo e, em 1564, passou a administrar também o Hospital Real de Todos os Santos de Lisboa, cuja construção fora iniciada por D. João II em 1492 e terminada por D. Manuel em 1501.
Assistindo os sofredores de dores físicas ou morais, enfermos e presos, órfãos e pobres, as Santas Casas de Misericórdia assumiriam muitas das obrigações sociais do Estado. Sua organização assemelhava-se à de uma antiga irmandade de Florença que, por sua vez, diziam ter sido inspirada em relatos de observações feitas por viajantes na China. A partir daí, Dom Manuel e seus sucessores incentivaram a criação de outras Misericórdias e elas se espalharam por Portugal, Brasil, África, Índia, Japão, Arábia, Pérsia, Indochina, China e Indonésia. Em 1525, quando morreu Dona Leonor, já havia cerca de sessenta Misericórdias em atividade.
No Brasil, a primeira Santa Casa de Misericórdia foi a de Santos, de Brás Cubas. Logo surgiram a da Bahia, de Tomé de Sousa, a do Espírito Santo e a do Rio de Janeiro, de José de Anchieta, a de Olinda, de João Paes Barreto, a de São Paulo e, em seguida, centenas de outras, servindo a todas as regiões e se responsabilizando pelo atendimento da maioria da população carente do país.
Assim surgiu uma das grandes heranças portuguesas dos heróicos tempos dos descobrimentos, as Irmandades de Misericórdia e as Santas Casas, que se espalharam pelo mundo acompanhando a expansão lusitana.
O surgimento dessas irmandades acompanhando as expedições de caravelas com seus navegadores em busca de fama e fortuna não foi mero acaso. Os desbravadores de terras e colonizadores precisavam de auxílio médico e de apoio em caso de morte dos parentes. A proliferação das Misericórdias era facilitada pelo costume dos aventureiros de utilizar parte dos lucros obtidos nas viagens para auxiliar os familiares daqueles que morriam no retorno à pátria. Além disso, o governo português incentivava a criação das irmandades, concedendo alvarás de privilégio, com isenções fiscais para os seus membros. Com o fim da expansão portuguesa, as misericórdias perderam sua função histórica, mas preservaram a importância médica.

A Santa Casa e a Igreja de S. Jerônimo, depois S. Francisco da Penitência, por volta de 1835. Em primeiro plano, os tropeiros e o mercado de trocas. Tela de Calixto.
O descobrimento do Brasil
Pedro Álvares Cabral deixou Portugal em 9 de março de 1500 com destino a Calicut, na Índia, seguindo uma rota previamente descoberta por Vasco da Gama. No percurso, apesar de contar com numerosas caravelas, experientes navegantes, bússolas e outros instrumentos de navegação, a armada teria desviado acidentalmente em direção sudoeste, vindo a descobrir o Brasil em 21 de abril. Mas, na verdade, Cabral cumpria sua missão de oficializar a descoberta das terras portuguesas no Novo Mundo, assumindo seu domínio, antes de seguir viagem. Gaspar de Lemos, que viera na armada de Cabral, retornou em 1501 com o florentino Américo Vespúcio para cartografar a costa e demarcar as terras. No que acreditavam ser o limite meridional dos domínios portugueses, deixaram alguns degredados, entre os quais o bacharel e Mestre Cosme Fernandes, cristão-novo condenado por suposto delito religioso, e que viria iniciar os povoados de Cananéia, Itanhahém e São Vicente. Outras expedições trouxeram degredados e alguns colonos, mas o interesse maior da coroa portuguesa no início do século XVI estava no comércio com as Índias, considerado mais lucrativo. Os franceses, alegando ignorar o Tratado de Tordesilhas que demarcava os limites coloniais entre Espanha e Portugal, faziam extrações de pau-brasil no país.


O início da colonização
Somente com a expedição de Martim Afonso de Souza é que de fato começou a colonização oficial e a distribuição de terras. Martim Afonso fundeou seus navios no Porto das Naus em 22 de janeiro de 1532. Elevou o já existente povoado de São Vicente à condição de Vila e capital da Capitania de São Vicente. Aproveitando as construções deixadas por Cosme Fernandes, que fora obrigado a se retirar para Cananéia e Iguape, ele estabeleceu um conselho, alfândega, nomeou juízes, levantou um pelourinho e uma igreja. Os novos colonos se estabeleceram na região do Enguaguaçu, plantaram cana de açúcar trazida da ilha da Madeira e construíram os primeiros engenhos do Brasil.
Na expedição colonizadora de Martim Afonso veio Brás Cubas, deixado aqui como feitor e fiscal quando da partida de Martim Afonso de volta a Portugal. Por volta de 1540, por diversas razões de ordem prática, o porto de São Vicente é transferido da Ponta da Praia para uma parte mais interna do estuário, próximo ao Outeiro de Santa Catarina, onde Luiz de Góes construíra a Capela de Santa Catarina, em frente ao povoado de Enguaguaçu, que passou a ser conhecido como povoado do Porto de São Vicente ou Nova Povoação. Em 1541 um maremoto destruiu a Casa do Conselho, a igreja e outras edificações da Vila de São Vicente, o que levou muitos dos moradores a mudarem-se para o novo povoado.
Conheça detalhes da colonização em História - Cidade

O terceiro prédio da Santa Casa em 1880,
quando teve suas instalações aumentadas.
1543 - A fundação do hospital
Em 1542 chega a Santos o novo Governador da Capitania, Cristóvão Aguiar de Altero, que dá novo impulso ao povoado do Enguaguaçu e convoca os moradores para a construção do primeiro hospital. Brás Cubas se coloca à frente da iniciativa, arrecadando entre os colonizadores mais abastados as contribuições que garantiram os meios para a construção do hospital, que veio a ser inaugurado em 1543, provavelmente no primeiro dia de novembro, a data que costumava ser reservada às grandes comemorações. O local escolhido para a construção foi o sopé do Outeiro de Santa Catarina (onde hoje se situa a Rua Visconde do Rio Branco), defronte ao edifício da Alfândega, no centro da Vila. O hospital foi chamado de Hospital de Todos os Santos, inspirado no nome do grande hospital de Lisboa e na data da sua fundação - o dia de Todos os Santos. Segundo Frei Gaspar da Madre de Deus, o povoado de Enguaguaçu passou a ser chamado Povoado do Porto de Todos os Santos e do Porto de Santos, por causa do nome do hospital.
Entre 1545 e 1547, o então Capitão-Mor Brás Cubas elevou o povoado à categoria de Vila, com o nome de Vila do Porto de Santos. Em 1551, Brás Cubas conseguiu o alvará real de privilégios (incentivo para as Misericórdias), concedido por D. João III – foi o primeiro obtido por uma Misericórdia brasileira. Em 1550 os jesuítas chegaram à região, e a Vila, o Porto, a Irmandade e o Hospital prosperaram sob a proteção do seu fundador.

O terceiro prédio da Santa Casa por volta de 1910, As ruínas da escadaria que
se vê na foto, na entrada principal, ainda existem na rotatória de acesso à via
que passa por sobre o túnel e segue em direção à Via Anchieta (img. M.Serrat).
1665 - O hospital muda de endereço
Com a tomada do trono de Portugal por Felipe II, da Espanha, em 1580, piratas da Inglaterra e Holanda, inimigas ferrenhas dos espanhóis, passaram a atacar as naus da Espanha e de suas colônias, incluindo o Brasil. Os ataques se tornaram ainda mais constantes após a destruição da Armada Invencível espanhola em 1588, comprometendo seriamente o comércio da colônia com a Europa e reduzindo as atividades do porto de Santos.
Em 1597, ano da morte de Brás Cubas, a Vila estava em decadência. A plantações perdiam seus colonos, os engenhos perdiam seus operários e o porto estava ocioso. Grande parte da população partia para o planalto, em parte buscando melhores oportunidades nas prósperas fazendas do interior ou tentando a sorte nas entradas e bandeiras, em parte fugindo das doenças infecciosas que o clima úmido e o terreno alagadiço do litoral faziam proliferar. O progressivo empobrecimento da Vila empobreceu igualmente a Irmandade da Misericórdia que, em 1620, deixou de ter edifício próprio.
A decadência foi tão grande que, em 1654, o hospital estava com suas atividades paralisadas. Os irmãos da Misercórdia, então, enviaram petição a D. Jeronymo de Athayde, conde de Athouguia, Capitão Geral do Estado do Brasil, que a eles concedeu provisão de recursos financeiros em outubro de 1654. Somente com a ajuda financeira do governo foi possível terminar a construção do segundo prédio da Santa Casa e da sua igreja, em 1665, junto ao prédio da Prefeitura, em local que ficou conhecido como Campo da Misericórdia, depois Largo da Misericórdia, Largo da Coroação e, finalmente, Praça Visconde de Mauá ou Praça Mauá.

Vista aérea do complexo junto ao sopé do Monte Serrat.
O prédio mais claro é o Hospital Municipal do Isolamento.
1836 - A mudança para o terceiro prédio
Com o tempo, o segundo prédio do hospital foi se degradando e a Irmandade se preparou para nova mudança. Em 1760, foi terminada a construção da nova Igreja, junto ao Morro de São Jerônimo (hoje Monte Serrat). Inicialmente chamada de Igreja de São Jerônimo, foi mais tarde consagrada a São Francisco da Penitência, que deu nome à Avenida São Francisco. Entre 1804 e 1830 a Irmandade funcionou nas dependências do Hospital Militar, instalado no edifício do antigo Colégio dos Jesuítas, onde hoje se situa a Alfândega. Em 1835 o provedor Capitão Antonio Martins dos Santos iniciou a construção do terceiro prédio da Santa Casa da Misericórdia no sopé do morro de São Jerônimo, junto à igreja de São Francisco da Penitência, que foi inaugurado no ano seguinte pelo provedor Dr. Cláudio Luís da Costa. Por volta de 1880 o hospital sofre uma reforma e ampliação. Em 1913 uma nova reforma e expansão, e a construção de um pavilhão de isolamento (mais tarde Hospital Municipal do Isolamento), inaugurado em 11 de abril de 1913.

A Santa Casa hoje: o complexo domina a paisagem do Jabaquara,
1945 - O prédio definitivo
Em março de 1928, um grande deslizamento de terras na face leste do Monte Serrat soterrou parte do hospital e algumas edificações próximas. Para construir o quarto prédio organizou-se na cidade uma grande campanha popular para a arrecadação de fundos, que vieram a se somar com recursos governamentais. No mês seguinte, era lançada a pedra fundamental do quarto e definitivo prédio da Irmandade da Santa Casa de Misericórdia de Santos, com as presenças do então Governador Dr. Júlio Prestes, do Bispo Diocesano D. José Maria Parreira Lara, da Mesa Administrativa da Irmandade, representada pelo Dr. João Carvalhal Filho e de representantes da comunidade. O local escolhido foi a esplanada do bairro do Jabaquara, distante dos morros para evitar novo soterramento. Em 2 de julho de 1945, o presidente Getúlio Vargas veio a Santos para inaugurar o novo e definitivo prédio, que tinha uma das maiores estruturas hospitalares do país, com 1400 leitos e os equipamentos mais modernos da época.

A ruína acima é o que sobrou da escadaria na entrada principal da antiga Santa
Casa, deixada como testemunha da história. Está localizada na rotatória de
acesso à via que passa por sobre o túnel e segue em direção à Via Anchieta.
 
"Tendo prestado quase cinco séculos de assistência, a Santa Casa da Misericórdia de Santos participou de todos os ciclos da história pátria. Cuidou dos fundadores desta Nação - os navegantes lusos, colonos, nativos e escravos. Atendeu aos bravos bandeirantes e aos pobres condenados. Tratou igualmente de nobres e de vassalos do Império Português e do Brasil Imperial. Serviu ao encontro de heróis da Independência e da Abolição da Escravatura, de tradicionais monarquistas e de inflamados republicanos. Cuida de patrões e de operários, de empregados e de desempregados. Ponto de união entre todos os segmentos da sociedade, é local de encontro de seus membros quando tomados pela dor e pela doença. A Santa Casa da Misericórdia de Santos serviu para a prática e o ensino da Medicina quase três séculos antes da fundação da primeira faculdade de medicina no país. Ciência e muito de humanitarismo se praticou em suas enfermarias, nesta que é a primeira escola prática de medicina européia do país. Entre os mestres desta Escola, inspirados pelas obras das damas portuguesas Isabel de Aragão e Leonor de Lencastre, destacaram-se Braz Cubas, José de Anchieta, Claudio Luiz da Costa e Martins Fontes, entre outros abnegados, alguns de nomes muito ilustres e muitos outros desconhecidos que têm trabalhado nesta Casa de Deus para os Homens". (Henrique Seiji Ivamoto).
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