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Projeto
Casa de Caranguejo |
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Habitação social na Favela do Dique, na Zona
Noroeste de Santos
Tese de graduação do Faculdade de Arquitetura
e Urbanismo
da Universidade de São Paulo (FAU-USP), 2004
Arquiteto: Pablo Iglesias
Orientador: Arquiteto Alexandre Delijaicov
Trabalho vencedor no Prêmio Cauê de Arquitetura e exposto
na II Bienal Internacional de Arquitetura de Rotterdam. |
Ocupação
das áreas junto às águas em Santos |
Do homem primitivo ao simples acampamento nos dias de hoje,
sempre buscou-se a proximidade da água, recurso vital
para a nossa existência. Lisboa tem o rio Tejo; Londres,
o Tâmisa; Buenos Aires, o Prata; Porto Alegre, o Guaíba;
São Paulo, o Tamanduateí. São exemplos
da estreita relação entre a escolha do local para
se viver e a água.
Como a água é um direito universal ao ser humano,
obrigatoriamente, as áreas ao seu redor são públicas,
sendo confundidas de terra de todos a terra de ninguém,
e como estas áreas muitas vezes estão localizadas
dentro da cidade, elas são ocupadas pela população
excluída, que não tem acesso à moradia,
nem mesmo às subsidiadas pelo Estado, e que abrangem
famílias com renda comprovada de até 3 salários
mínimos. É neste contexto que se insere a Favela
do Dique, na Zona Noroeste de Santos, onde vivem mais de 20
mil pessoas, - além das 6.500 que vivem na área
da favela localizada no vizinho município de São
Vicente -, distribuídas em 700.000 m2, com mais de 4
km de extensão, nos quais se distribui desordenadamente
milhares de palafitas sobre as margens do rio do Bugre e canal
de Barreiros. Resíduos domésticos e esgotos sem
tratamento são lançados nessas águas todos
os dias, situação que ameaça tanto a população
que lá habita quanto os mangues, importante ecossistema
na cadeia biológica mundial. Segundo a Cetesb, 43% dos
mangues santistas encontram-se degradados, praticamente todos
aqueles localizados na parte insular do Município. |

Aspecto das palafitas da Favela do Dique:
habitações precárias que criam
um obstáculo entre a cidade e as águas, desprezando
suas potencialidades. |
Problemas
da Favela do Dique |
O conceito de habitação não se limita
à casa, mas também a tudo que é necessário
para a vida humana: infra-estrutura urbana, comércio,
serviços e, no caso do Dique, principalmente equipamentos
sociais. Em termos de comércio, na Favela do Dique tem
"de tudo um pouco": o Supermercado Conquista, a casa
de carnes Rádio Clube, o bazar Santo Antonio, o salão
Jardim Rádio Clube… Mas não há a
infra-estrutura básica - esgoto e águas servidas
correm a céu aberto. A favela não possui creches
ou pré-escolas e a única escola, a Escola Estadual
de Primeiro Grau Pedro Crescenti, não tem aulas no período
noturno, deixando muitos jovens sem estudar.
Outro problema é o lixo, já que muitos moradores
descartam nas águas garrafas pets, sacos plásticos,
etc. A prefeitura de São Vicente vem realizando cursos
de reciclagem, coordenados pela Secretaria de Projetos Especiais,
mas do lado santista não há contrapartida equivalente.
Não há equipamentos de inserção
social e democratização cultural como rádios
comunitárias, telecentros e nem programas voltados à
geração de emprego e renda. |
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A Favela do Dique ocupa
áreas de mangue e, assim como o porto, cria uma
barreira entre a cidade e o estuário. No canto inferior
direito pode-se observar
o atual programa projetado pela Cohab-SP, em andamento. |
Projeto
Casa de Caranguejo: restabelecendo
o contato entre o santista e as águas estuarinas |
O Projeto "Casa de Caranguejo" pretende re-estabelecer
a relação do homem com a água de forma
não predatória, mas sim harmônica, baseado
na fruição e contemplação e no aproveitamento
de suas potencialidades, com caráter fortemente educativo
para todas as partes envolvidas. Consiste em um projeto de habitação
para a área da Favela do Dique, tendo como premissa as
próprias palafitas e sua relação direta
com as águas, bem como próprio o modo de vida
do homem-caranguejo, habitante da área de mangue. Considera
as espacialidades da favela e as circunstâncias que a
produziram, não de forma "higienista", que
venha a erradicar as relações existentes na favela,
mas que as confirmem, apropriando-se delas ao construir uma
nova realidade.
A água passa a ser tratada como elemento construtivo-educativo,
descrevendo um ciclo: a água da chuva é armazenada
na cobertura e reutilizada na habitação e em culturas
experimentais; a água servida captada é transferida
pela passarela esgoto-duto, por gravidade, até uma micro
estação de tratamento, incrustada no morro do
Ilhéu e voltada para o terreiro como uma seção
didática de seu funcionamento. De lá ela é
devolvida ao canais, tanques, piscinas e finalmente ao rio-mar,
recriando o uso e completando o circuito. |

Implantação do conjunto
Casa de Caranguejo, entre o Morro do Ilhéu (à
direita)
e o Canal São Jorge, criando conexão entre o Jardim
São Manoel e o Jardim
Rádio Clube através do caminho da União
(a esquerda). |
O
partido do projeto |
O projeto "Casa de Caranguejo" ocuparia uma área
localizada entre o Morro do Ilhéu e o Canal São
Jorge, na Zona Noroeste de Santos, área conhecida como
Caminho Butantã. Um projeto sobre-dentro-na água,
que contempla a criação de novas paisagens urbanas,
com relações mais elásticas entre dois
meios opostos. A terra, onde tudo é parcelado, e a água,
onde o conceito de propriedade não existe, essencialmente
coisa pública e, por isso, com acesso garantido em todos
os sentidos. Reforçando esse caráter natural,
propõe-se o direito de usufruto para as unidades habitacionais,
como nas cooperativas de viviendas uruguaias e nas HLM (habitation
à loyer minimum) francesas. Inexiste a propriedade,
mas sim esse direito que não pode ser vendido, ele é
simplesmente transferido ao outro por critérios de seleção
diferentes da simples compra e venda do mercado imobiliário.
A idéia é afirmar a lógica da construção
sobre palafitas de forma racional e organizada, valorizando
as potencialidades das águas, se apropriando das especifidades
deste tipo de moradia. O projeto procura se integrar ao restante
da cidade já existente, criando espaços dedicados
ao comércio (mercearias, padarias, açougues) e
serviços (pequenas oficinas, escritórios e consultórios).
Cria uma alternativa aos conjuntos habitacionais tradicionais
que, geralmente, por não possuirem comércio ou
serviços, acabam segregados, criando espaços sem
uso, sem vida, que favorecem a degradação dos
entornos. Além disso, tenta conectar áreas desconectadas
da cidade, como os bairros Jardim São Manoel e Rádio
Clube, através do Caminho da União. |

Planta tipo com as unidades habitacionais,
os equipamentos
sociais e o cais para atracação de pequenas embarcações. |
Sistema
Construtivo |
Este projeto considera as particularidades, espacialidades
e estéticas da favela e as circunstâncias que a
produziram. Na favela, "os materiais são encontrados
em fragmentos heterogêneos; a construção,
feita com pedaços encontrados aqui e ali, é forçosamente
fragmentada no aspecto formal. A casa continua evoluindo. Os
barracos são fragmentários porque se transformam
continuamente" (Estética da Ginga, de Paola
Berenstein Jaqcues).
O projeto propõe o uso de componentes pré-fabricados
de concreto armado para a estrutura, - especificamente pilares,
vigas e lajes -, e sistemas de fechamento em argamassa armada.
O sistema permite maior flexibilidade na configuração
das unidades: a estrutura é fixa, mas de acordo com as
necessidades dos moradores, pode-se montar paredes e janelas
em posições distintas dentro das unidades, com
exceção da localização dos banheiros,
cozinha e área de serviço. Esta possibilidade
resultará em fachadas dinâmicas, de composições
variadas, ora com varandas, ora com janelas. |

Elevação: malha estrutural
em pré-fabricados de concreto
preenchida, por exemplo, por contêineres expropriados. |
O projeto ainda prevê a participação dos
moradores da favela na construção, em regime de
mutirão, tanto na montagem da estrutura como na fase
de acabamento. Além da consequente redução
dos custos, a participação popular seria primordial
para a apropriação e a valorização
do espaço por seus futuros moradores.
Assim, o espaço proposto respeita o caráter de
transformação contínua da favela e a apropriação
do morador, desde a unidade, na qual o futuro habitante assume
a etapa dos fechamentos e caixilhos a partir de uma mesma malha
estrutural, até os espaços coletivos, que podem
mudar de função, se expandir ou contrair, dependendo
do uso e da necessidade. Enfim, o complexo deve ser vivo e,
desta forma, favorecer a construção de uma identidade. |

Corte estrutural do conjunto de habitação. |
As
unidades do conjunto |
O projeto propõe três tipos de usos aos espaços
e unidades do conjunto - comércio, serviços e
habitação -, além da instalação
de equipamentos sociais e culturais. Um cais para embarcações
permitiria a extensão destes serviços, por via
marítima, a outras áreas carentes localizadas
na região do estuário santista.
O comércio se localizaria no térreo do conjunto,
quando este estivesse sobre área seca, formando uma praça
que serviria também de área de lazer aos moradores.
O primeiro pavimento seria composto de kitnets, que poderiam
servir tanto para habitação, como para escritórios,
consultórios, oficinas e estúdios, a critério
das necessidades do morador.
No segundo e terceiro pavimentos se localizariam os apartamentos
duplex, a exemplo de conjuntos habitacionais construídos
no Rio de Janeiro e São Paulo. No segundo pavimento,
sala, cozinha e área de serviço, enquanto que
no terceiro pavimento, quartos e banheiro; os dois pavimentos
seriam integrados por uma escada elicoidal.
O acesso às unidades se daria através de uma generosa
varanda que percorreria toda extensão do conjunto, com
escadas de acesso a cada 30 metros, junto às áreas
coletivas. |

Maquete eletrônica do conjunto,
com o Teatro-cinema-auditório
flutuante-ambulante. Ao fundo, o Morro do Ilhéu. |
Equipamentos
sociais: instrumentos de transformação |
O conceito de habitação não se restringe
à célula habitacional, mas a tudo o que possibilita
e é necessário à vida humana: a infra-estrutura
urbana, comércio e serviços, e principalmente
equipamentos sociais. Assim, são propostos equipamentos
de inserção e democratização cultural
relacionados ao saber local, bem como equipamentos ligados a
programas de geração de emprego e de renda, de
forma educativa e cooperativada, que seriam estratégicos
para a transformação das condições
político-econômicas a que se encontram submetidos
os homens-caranguejo:
Teatro-cinema-auditório:
flutuante e ambulante, seria composto por dois módulos
separados que, quando conectados, formariam um só teatro
com palco central. O equipamento serviria como núcleo
de experimentação e propagação de
uma série de atividades, como oficinas de teatro, artes
e música, biblioteca, gibiteca, vídeo, cinema,
discoteca;
Telecentro para os "analfabytes"
e rádio-TV comunitária;
gráfica del pueblo
(espécie de editora cooperativada que produziria material
didático para as escolas, livros em edições
econômicas e até mesmo um jornal comunitário);
Oficina-escola
de carpintaria naval, um micro estaleiro cooperativado para
a formação de novos mestres na prática
tradicional da construção e manutenção
de barcos de pesca, canoas e outras formas de embarcação;
Cooperativa dos pescadores
para beneficiamento de produtos da pesca em natura, agregando
valor para a posterior comercialização. A Cooperativa
estaria relacionada a uma parte de pesquisa e produção
(aqüicultura e maricultura);
Usina do lixo, com centro de
triagem, primeiro beneficiamento e transbordo de materiais recicláveis.
Situada em área estratégica, a chegada e saída
de insumos se faria por diversos meios de transporte (canal,
ferrovia e a via Anchieta). Os tradicionais coletores de lixo
por carroça (carroceiros) também poderiam fazê-lo
por canoa.
fábrica canteiro para
pesquisa, desenvolvimento e produção de componentes
pré-fabricados leves de concreto armado para a construção
civil. Localizada no mesmo terreno da usina de lixo, seria composta
de um galpão de pré-fabricados, serralheria e
carpintaria-marcenaria. O funcionamento se daria em regime de
cooperativa, com auto-gestão dos próprios trabalhadores. |
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Implantação
do complexo
1. conjunto pluri-habitacional
2. Teatro-cinema-auditório
3. Usina de lixo e fábrica-canteiro de componentes
pré-fabricados. |
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Bibliografia |
"Arquitectura Popular de Venezuela", de Graziano
Gasparini e Luise Margolies. Caracas: Armitamo, 1986. "El Rio de La Plata como Território",
de Juan Manoel Borthagaray. Buenos Aires: Infinito, 2002.
"Maré Vida na Favela", de Drauzio Varella,
Ivaldo Bertazzo e Paola Berenstein Jacques. Rio de Janeiro:
Casa da Palavra, 2002. "Estética da Ginga: a
arquitetura das Favelas através da obra de Hélio
Oiticica", de Paola Berenstein Jacques. Rio de Janeiro:
Casa da Palavra, 2001. "Arquitetura Nova: Sérgio
Ferro, Flávio Império e Rodrigo Lefévre,
de Artigas aos mutirões", de Pedro Fiori Arantes.
São Paulo: Ed. 34, 2002. |
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